Prisão em flagrante pode ser substituída

O objetivo deste artigo é analisar a importância do princípio da insignificância no momento da prisão em flagrante. Como é cediço, o referido princípio ganhou e tem ganhado cada vez mais força dentro do nosso ordenamento jurídico. Todavia, sua aplicação na prática ainda é tema de várias polêmicas, principalmente por não haver um dispositivo legal tratando de maneira clara sobre o assunto. Sendo assim, este trabalho tem como foco principal aclarar algumas dúvidas que envolvem esse famigerado princípio e defender a sua aplicação pelos operadores do Direito, em especial pelos Delegados de Polícia no momento da lavratura do auto de prisão em flagrante delito. Conceito de Crime e Teoria da Tipicidade Conglobante O conceito de crime é de fundamental importância para a compreensão de diversos institutos do Direito Penal, sendo certo que para se entender e se aplicar o princípio da insignificância, é imprescindível que se tenha bem em mente o que pode ser considerado como um fato criminoso. Em estreita síntese, a doutrina majoritária se divide, ao conceituar o crime, em duas correntes: teoria bipartida e teoria tripartida. Qualquer estudante de Direito, ainda que iniciante, sabe definir o crime como sendo um fato típico, ilícito e culpável. Esse é o conceito adotado pela teoria tripartida do crime[1]. Por outro lado, a teoria bipartida entende o crime como sendo um fato típico e ilícito, sendo a culpabilidade apenas um pressuposto para a aplicação da pena[2]. Para os seguidores da primeira corrente, por exemplo, o menor de dezoito anos (criança e adolescente) não pode praticar crime, vez que é considerado inimputável, o que acaba por excluir a culpabilidade e, conseqüentemente, o crime. Por outro lado, para os seguidores da teoria bipartida, o menor de idade comete crime, pois o fato é típico e ilícito, mas não poderá ser penalizado, já que não está presente o requisito da culpabilidade, que, de acordo com a teoria em questão, é pressuposto para a aplicação da pena e não requisito do crime. Nesse ponto, devemos destacar que, seja qual for a teoria adotada, o fato típico, primeiro elemento do crime, deve ser analisado para que se possa constatar a ocorrência de uma infração penal. Caso se configure a existência de um fato típico, passa-se posteriormente a análise da ilicitude da conduta. Caso contrário, se verificada a ausência de tipicidade da conduta, o fato não poderá ser acoimado de criminoso, dispensando-se, de pronto, a análise da ilicitude. Por força do princípio da legalidade, quando o legislador optar por proibir ou impor determinadas condutas sob a ameaça de uma sanção penal, ele deve valer-se de uma lei. É por meio da lei que o Estado consegue traçar as condutas que devem ser seguidas pelos cidadãos. O professor Argentino Eugenio Raúl Zaffaroni ensina que “o tipo penal é um instrumento legal, logicamente necessário e de natureza predominantemente descritiva, que tem por função a individualização de condutas humanas penalmente relevantes.”[3] Nessa mesma linha, o doutrinador argentino desenvolveu uma nova teoria do tipo penal que vem ganhando muitos adeptos no Direito brasileiro. Trata-se da teoria da tipicidade conglobante. Como é cediço, o fato típico é composto pela conduta do agente, pelo resultado advindo dessa conduta, bem como pelo nexo de causalidade existente entre a conduta e o resultado. Ademais, para que o fato seja típico, também é indispensável que essa conduta se amolde a um tipo abstratamente descrito em uma lei, o que denominamos de tipicidade (tipicidade = subsunção do fato ao tipo previsto em lei). Rogério Greco, ao explicar a teoria desenvolvida por Zaffaroni, defende que a tipicidade penal se divide em tipicidade formal e tipicidade conglobante[4]. Para ele, a tipicidade formal seria a mera subsunção da conduta do agente a um fato abstratamente descrito em uma lei penal. Contudo, para que o fato seja típico, não bastaria a constatação da tipicidade formal ou legal, sendo indispensável a constatação da tipicidade conglobante que, por sua vez, é composta da tipicidade material e da antinormatividade. De acordo com a teoria, o conceito de antinormatividade se extrai do fato de que uma conduta que é fomentada ou imposta por uma norma não pode ser proibida por outra. Sendo assim, o fato típico deve ser analisado de uma maneira conglobada com todo o ordenamento jurídico, sendo considerado antinormativo apenas quando não estiver amparado por qualquer outra norma legal. Por fim, para concluirmos pela tipicidade penal, é necessária a análise da tipicidade material, que também compõe o conceito de tipicidade conglobante. Assim, podemos verificar a presença da tipicidade material naquelas condutas consideradas mais graves pelo Direito e que ferem os bens jurídicos mais importantes. O Direito Penal tem por finalidade a proteção dos bens tidos como mais importantes dentro de uma sociedade, sendo que o princípio da intervenção mínima assevera que nem todo bem é passível de proteção por parte do Estado, assim como nem toda lesão a um bem jurídico é significante a ponto de merecer a repressão penal. Em síntese, a tipicidade material defende que apenas as lesões mais graves aos bens jurídicos mais importantes é que merecem a proteção do Direito Penal. Para concluir, Rogério Greco resume: “para que se possa falar em tipicidade penal é preciso haver a fusão da tipicidade formal ou legal com a tipicidade conglobante (que é formada pela antinormatividade e pela tipicidade material). Só assim o fato poderá ser considerado penalmente típico.”[5]Devemos destacar que o estudo do princípio da insignificância reside justamente nesta segunda parte da tipicidade conglobante, qual seja, a chamada tipicidade material.Princípio da Insignificância Após a análise do conceito de crime de acordo com a teoria da tipicidade conglobante, passamos agora a dar enfoque ao princípio da insignificância, objeto principal deste trabalho. O princípio da insignificância foi fixado por Claus Roxin e defende a idéia de que mínimas ofensas aos bens jurídicos não merecem a intervenção do Direito Penal; este se mostra como desproporcional à lesão efetivamente causada. Luiz Flávio Gomes nos dá o conceito de crime insignificante: “infração bagatelar ou delito de bagatela ou crime insignificante, expressa o fato de ninharia, de pouca relevância. Em outras palavras, é uma conduta ou um ataque ao bem jurídico tão irrelevante que não requer a (ou não necessita da) intervenção penal. Resulta desproporcional a intervenção penal nesse caso. O fato insignificante, destarte, deve ficar reservado para outras áreas do Direito (civil, administrativo, trabalhista etc.).”[6] Assim, certo de que o princípio da insignificância só demanda a força repressora do Direito Penal naquelas lesões mais graves aos bens jurídicos mais importantes, não podemos falar em crime quando se tratar de infrações de bagatela, pois, nesses casos, não é possível se constatar a presença da tipicidade material, essencial para o conceito moderno de crime. O princípio da insignificância sempre encontrou certa resistência na sua aplicação em virtude de não haver uma lei tratando do assunto ou uma jurisprudência formada sobre os requisitos para a sua incidência. Contudo, depois de diversos julgados, o STF entendeu pela necessidade dos seguintes vetores para a sua aplicação: ausência de periculosidade social da ação; mínima ofensividade da conduta do agente; inexpressividade da lesão jurídica causada; e a falta de reprovabilidade da conduta. Ademais, devemos salientar que os critérios desenvolvidos pelo STF indicam a incidência do princípio em estudo ora quando se constatar o puro desvalor da ação (por exemplo, jogar um pedaço de papel amassado contra um ônibus não configura o crime previsto no artigo 264 do CP – arremesso de projétil), ora quando se verificar o puro desvalor do resultado (por exemplo, furto de um tomate), ou ainda na combinação de ambos (exemplo: acidente de trânsito com culpa levíssima e resultado totalmente insignificante). Assim, diante do exposto, defendemos com veemência a aplicação do princípio da insignificância pelos operadores do Direito, inclusive pelo Delegado de Polícia no momento da análise da prisão em flagrante delito. Infração Bagatelar Própria e Infração Bagatelar Imprópria A doutrina divide o crime de bagatela em duas espécies: infração bagatelar própria e imprópria.[7] A primeira é aquela que já nasce sem qualquer relevância penal, uma vez que não houve um desvalor na ação, no resultado ou na combinação de ambos. Já a infração bagatelar imprópria nasce relevante para o Direito Penal (pois há relevância da conduta ou do resultado), mas ao longo do processo se verifica que a aplicação de qualquer pena no caso concreto apresenta-se totalmente desnecessária. Em outras palavras, na infração bagatelar própria, o fato é irrelevante desde sua origem e, sendo assim, não há crime, pois o fato totalmente irrelevante não merece a repressão do Direito Penal, principalmente devido à ausência da tipicidade material que acaba por excluir o crime, conforme mencionamos anteriormente. Já na infração bagatelar imprópria, o fato nasce relevante, ou seja, há crime, mas, ao longo do processo, a aplicação de uma pena se mostra totalmente desnecessária. Neste ponto, é mister que entendamos a diferença entre o princípio da insignificância e o princípio da irrelevância penal do fato. O primeiro se aplica em todos os casos que se constatar que houve uma infração bagatelar própria. Nesses casos, o corolário natural do fato é a exclusão da tipicidade penal, mais especificamente a tipicidade material. Não há crime, pois o fato é atípico. Por outro lado, o princípio da irrelevância penal do fato está ligado à infração bagatelar imprópria. Aqui, há um desvalor da conduta ou do resultado. O fato é, em princípio, penalmente punível. O processo deve ser instaurado contra o agente, mas tendo em vista as circunstâncias do caso concreto, a pena pode se tornar totalmente desnecessária, como no caso do perdão judicial concedido pelo juiz. Ademais, vale ressaltar que o fundamento para tanto se encontra no artigo 59 do CP. Luiz Flavio Gomes sintetiza com precisão: “infração bagatelar própria = princípio da insignificância; infração bagatelar imprópria = princípio da irrelevância penal do fato. Não há como se confundir a infração bagatelar própria (que constitui fato atípico – falta de tipicidade material) com a infração bagatelar imprópria (que nasce relevante para o Direito Penal). A primeira é puramente objetiva. Para a segunda, importam os dados do fato assim como uma certa subjetivação, porque também são relevantes para ela o autor, seus antecedentes, sua personalidade etc.”[8] Prisão em Flagrante e o Princípio da Insignificância Frente ao exposto até aqui, restou claro que o princípio da insignificância possui enorme importância dentro do nosso ordenamento jurídico. Da mesma forma, não restam dúvidas que o referido princípio não deve ser esquecido pelos operadores do Direito, o que inclui a figura do Delegado de Polícia. Assim, certo de que a Autoridade Policial deve atuar como um garantidor dos direitos fundamentais dos cidadãos, impedindo que inocentes tenham o seu direito a liberdade de locomoção restringido, o princípio da insignificância deve ser observado no momento da formalização da prisão em flagrante. Cabe ao Delegado de Polícia, como operador do Direito, analisar o caso concreto e verificar a legalidade da prisão e se esta deve subsistir. Conforme defendemos em outro trabalho, “O Delegado de Polícia é aquele que tem o primeiro contato com o crime e que, portanto, apresenta as melhores condições para efetivar a investigação. Temos de enxergar a figura da autoridade policial como a de um juiz da fase pré-processual. O Delegado é um sujeito imparcial e que deve atuar como um garantidor dos direitos fundamentais dos sujeitos passivos da investigação”.[9] Ademais, vale lembrar que o Delegado de Polícia possui discricionariedade na formação do seu convencimento jurídico, o que reforça o entendimento de que é possível a aplicação do princípio da insignificância para justificar a não lavratura do auto de prisão em flagrante delito. Nesse diapasão, é a lição de Roger Spode Brutti: “As Autoridades Policiais, por suposto, constituem-se agentes públicos com labor direto frente à liberdade do indivíduo. É da essência das suas decisões, por isso, conterem inseparável discricionariedade, sob pena de cometerem-se os maiores abusos possíveis, quais sejam, aqueles baseados na letra fria da Lei, ausentes de qualquer interpretação mais acurada, separadas da lógica e do bom senso.”[10] Dessa forma, uma vez que a infração bagatelar própria está diretamente ligada ao princípio da insignificância e que este, por sua vez, exclui a tipicidade material da conduta, não é possível que se fale em crime nesses casos. O fato é atípico. Assim, se não há crime, não há que se falar em prisão em flagrante. Já está mais do que na hora de o Delegado de Polícia assumir a sua função de operador do Direito. Trata-se de uma carreira jurídica, que deveria, inclusive, ser reconhecida em nível constitucional. Sendo assim, cabe a Autoridade Policial formar o seu convencimento jurídico de maneira discricionária, aplicando o princípio da insignificância para justificar a não lavratura do auto de prisão em flagrante. De maneira ilustrativa, imaginemos o exemplo de uma mulher que foi autuada em flagrante pela Polícia Militar devido ao furto de um xampu em um supermercado. Tal conduta já nasce insignificante (infração bagatelar própria), pois não há o desvalor do resultado. O bem jurídico protegido, qual seja, o patrimônio do dono do supermercado não foi lesado de maneira significativa a ponto de merecer a repressão do Direito Penal. É desproporcional mandar ao cárcere uma mulher que nunca apresentou qualquer risco a sociedade, somente pelo furto de um xampu. As conseqüências da punição não são proporcionais ao mal causado pela sua conduta, o que fere inclusive o princípio da dignidade da pessoa humana. Desse modo, cabe ao Delegado de Polícia não ratificar a voz de prisão dada anteriormente pelo Policial Militar e zelar pelo direito fundamental a liberdade daquela mulher, deixando, assim, de lavrar o auto de prisão em flagrante devido à ausência de tipicidade material, o que exclui o crime. Sem embargo, a mulher do nosso exemplo não poderá ficar impune. Todavia, a sua punição deve ficar a cargo dos outros ramos do Direito, como o Direito Civil, por exemplo. Em conclusão, defendemos que cabe ao Delegado de Polícia, como operador do Direito, ao fazer uso de seu poder discricionário na formação do seu convencimento jurídico, analisar a possibilidade de efetuar ou não o flagrante em casos que estejam abarcados pelo princípio da insignificância. Agindo assim, a Autoridade Policial estará zelando pelos direitos fundamentais dos envolvidos e preservando o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento maior da nossa Constituição. Bibliografia BRUTTI, Roger Spode. O princípio da insignificância frente ao poder discricionário do Delegado de Polícia. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9145 ; GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Insignificância e outras excludentes de tipicidade. Volume 1. Ed. Revista dos Tribunais. 2009; GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 9ª Edição. Vol.1. Ed. Impetus.2007; JESUS, Damásio E. Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 1994. NETO, Francisco Sannini. A Importância do Inquérito Policial para um Estado Democrático de Direito. Artigo disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=12998 ; ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de derecho penal – Parte general. Buenos Aires: Ediar, 1996. [1] Adotam essa teoria, entre outros, Nélson Hungria, Francisco de Assis Toledo e Cezar Roberto Bitencourt. [2] Adotam essa teoria: Júlio Fabbrini Mirabete e Damásio E. de Jesus. [3] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de derecho penal – Parte general, p. 371. [4] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. P. 156. [5] | GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. P. 160. [6] GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Insignificância e outras excludentes de tipicidade. p.15 [7] Luiz Flavio Gomes faz esta distinção no seu livro Princípio da Insignificância e outras excludentes de tipicidade. Ed. Revista dos Trubunais. [8] GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Insignificância e outras excludentes de tipicidade. p. 25. [9] SANNINI NETO, Francisco. A importância do inquérito policial para um Estado Democrático de Direito. Disponível em www.jusnavegandi.com.br [10] BRUTTI, Roger Spode. O Princípio da Insignificância frente ao poder discricionário do Delegado de Polícia. Disponível em www.jusnavegandi.com.br